eu(s)

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Hoje o céu esteve cinza durante a maior parte do dia, apesar do calor intenso que sufoca a todos nesse verão carioca. No meio do dia, eu já conseguia sentir o cheiro da chuva que se aproximava. Sentei-me para assistir televisão, mas tenho a impressão de que ela viu mais a mim do que eu a ela. Mais uma reprise – do lado de lá e de cá da tela. As almofadas me engoliam enquanto eu me afundava nelas. Nunca como naquele momento a sala tão entulhada de coisas se esvaziou tanto, e os meus pensamentos começaram a ecoar pelos cantos, ricocheteando no espelho e me esbofeteando. De nada adiantou adiar. Foi em vão sair, beber, dançar. Pelo menos aqui. Para isso, de nada valeu. Não resolveu. Não anulou. Não deixou de existir. Não fez-como-se-não-existisse. Não fez de conta coisa nenhuma. Por mais que se tenha coisas a fazer, lugares a ir, pessoas a encontrar, ele sempre sobra ali no cantinho como um resquício que nem a chuva apaga. Eu tentei ignorar, evitar, atravessar para o outro lado da rua, mas, ainda que eu corresse por horas, em algum momento eu seria obrigada a parar como naquelas longas horas. Pode até ser que não fosse daqueles compromissos inadiáveis, mas, de fato, o encontro comigo era inevitável. E eu estive ali por toda a tarde, completamente disponivel ao meu proprio deleite. Eu tentei argumentar, justificar, me retratar, mas é impressionante como eu posso ser implacável. Como doeu ver aquilo no que eu havia me tornado. Tantas diferenças mal resolvidas. Como eu pude ser capaz de fazer aquilo comigo? Depois de tanto tempo e tantas idas e vindas, as arestas ainda estavam ali. O meu primeiro impulso foi dizer ‘Então vamos apará-las de uma vez e resolver tudo’. Eu tentei segurar as minhas mãos. ‘Não! Será que é tão dificil entender?’ Eu não me dei ouvidos e cortei rebarba por rebarba, ponta por ponta, cada saliência. Defini os contornos, marquei os limites, indiquei o que era em cima, o que era embaixo, o que era dentro, o que era fora, o que era verso, o que era prosa. Mas os ecos não pararam nem por um segundo. Nem antes, nem durante, nem depois. E eram tantos, e se debatiam, e preenchiam todo o lugar, e me empurravam contra a parede. Então, eu pude ver no reflexo no espelho. Eu chorava. Copiosamente. Eram tantos ecos que eu não conseguia mais consolar a mim. Eu tentei me esticar, aumentar braços e pernas. Esforço vão. Só pude encostar a ponta dos dedos. Mas, a cada toque, eu gritava. Foi quando eu vi. Marcas de muito tempo, cicatrizes recentes, feridas abertas. Vi os cortes que eu acabara de fazer. Eu olhei para mim, eu vi a mim no espelho, eu vi os meus pedaços pelo chão. Eram três. Aquela que eu fui, aquela que eu era e aquela que eu não poderei mais ser.

“All those moments will be lost in time, like tears in the rain” Blade Runner, 1982

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